Entrevista cedida pela Dra. Vera Barros de Leça Pereira
APAN - Quais os motivos a levaram a escolher esta profissão: nutricionista?
Minha tia, Cecília de Souza Barros, irmã de meu pai foi, nos anos cinquenta, uma pioneira na divulgação da soja. Ela era funcionária da Secretaria da Agricultura que, à época, iniciou uma campanha para divulgar o uso da soja na alimentação diária. Seu interesse na melhoraria da alimentação do brasileiro acabou por contagiar-me e encaminhou minha prática profissional que se iniciou com o Curso de Formação de Dietistas, na escola Carlos de Campos, seguido do Curso de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública, onde me formei em 1961.
APAN - Qual (ais) sua(s) área de atuação e quais as mudanças mais significativas que pode perceber no decorrer dos anos?
Iniciei minha prática profissional na área de alimentação institucional e após alguns meses ingressei na merenda escolar do Estado de São Paulo, na qual participei dos trabalhos de transformação de um incipiente programa de distribuição eventual de gêneros para poucas escolas da capital em um dos maiores programas de alimentação institucional do Governo do Estado de São Paulo. Após vinte anos voltei para a área de alimentação institucional focada na alimentação infantil, onde trabalhei outros dez anos. Já aposentada, além de atividades docentes mantenho uma consultoria para empresas, na área comercial e institucional de alimentação para coletividades. Ao longo desses quarenta anos, atuando em diversas áreas, percebi significativas mudanças no campo de trabalho do nutricionista, inicialmente bastante restrito e muito pouco conhecido ou reconhecido, avançando para uma situação de amplo reconhecimento e enorme diversificação. A atuação de inúmeras colegas em postos de prestígio ao lado do vertiginoso crescimento numérico da categoria deu visibilidade à profissão e permitiu o seu fortalecimento. Mas, o meteórico crescimento no número de cursos e de profissionais trouxe também problemas e indefinições. Uma breve análise desse fenômeno mostra que o pequeno grupo de nutricionistas, profissionalmente homogêneo e coeso do início da minha carreira, transformou-se num grande contingente de profissionais com atuação amplamente diversificada e bastante heterogênea.
Na minha visão, essa realidade tem dificultado a caracterização da prática do nutricionista num mundo do trabalho cada vez mais complexo e exigente, comprometendo a possibilidade de aliar o peso numérico da categoria à clara projeção social do seu perfil profissional. A realidade atual nos mostra que, em paralelo ao significativo número de nutricionistas em exercício no país, persistem, na população brasileira, as consequências de uma alimentação inadequada e ou insuficiente. Vê-se assim que a efetiva participação do nutricionista no encaminhamento das grandes questões da alimentação da população brasileira padeceu, por longos anos, de insuficiência numérica e, atualmente, sofre pela dificuldade na definição social do seu perfil profissional, comprometendo o prestígio que merece. O aprofundamento desta questão foge ao âmbito deste, mas é notória a preocupação das agências formadoras, das entidades de classe, do órgão de fiscalização da profissão e de diversas colegas, que tem se debruçado sobre este tema na tentativa de dimensioná-lo e enfrentá-lo.
APAN - Você se lembra de alguma passagem da sua história na nutrição que conte um pouco da trajetória da profissão?
A minha história como Nutricionista foi marcada pelas profundas modificações por que passaram tanto a ciência da Nutrição como a prática profissional que tem nessa ciência o seu fundamento teórico. Grande parte do que aprendi enquanto aluna teve que ser reaprendido e/ou reciclado e penso que essa necessidade de contínuo "reaprender" mostra a trajetória da nossa profissão, ao mesmo tempo em que delineia o futuro da nossa prática profissional. Uma prática que tem por base uma ciência em plena efervescência de conhecimentos deve estar pronta para se renovar a cada dia. Essa incerteza sobre as certezas tem sido uma das mais marcantes características da minha prática profissional.
APAN - Para você até onde a ciência da nutrição pode chegar?
Estabelecer limites para uma ciência, especialmente uma ciência nova como a Nutrição parece-me, no mínimo, ingênuo e não consigo sequer vislumbrar os seus limites. Alguns aspectos que delineiam um futuro não distante para a ciência da Nutrição decorrem, por exemplo, dos estudos para decifrar o genoma humano e daqueles com células troncos, que certamente trarão significativos desdobramentos para o entendimento da Nutrição. Ao mesmo tempo, a alimentação humana, que é o objeto de trabalho do nutricionista, deverá passar por profundas modificações como, por exemplo, aquelas decorrentes de conquistas tecnológicas para a agricultura e a indústria quanto à obtenção de alimentos destinados ao consumo do crescente contingente de seres humanos do nosso planeta. Os desdobramentos das descobertas sobre novos componentes dos alimentos, com funções na saúde e na doença e as profundas modificações no estilo de vida do homem na terra e até em outros planetas, determinarão mudanças nas necessidades nutricionais dos indivíduos assim como na sua forma de obter, preparar e consumir os alimentos. Nesse panorama é possível afirmar que como resultado das imprevisíveis conquistas da ciência da Nutrição, os nutricionistas do futuro terão uma prática profissional profundamente diferente daquela que conhecemos.
APAN - Você já colaborou com várias entidades de classe - APAN, CRN, CFN - em sua opinião qual o papel destas entidades no desenvolvimento do profissional e da ciência da nutrição?
As entidades que congregam nutricionistas estão voltadas, essencialmente, para o próprio profissional, seja na fiscalização do exercício profissional, na defesa de seus interesses trabalhistas ou no seu aperfeiçoamento técnico e científico. Por outro lado, a ciência da Nutrição tem o seu desenvolvimento ligado a pesquisas e estudos acadêmicos, muitas vezes inseridos em propostas multidisciplinares, que interferem e modificam a prática de muitos profissionais. Nessa ótica e retomando a visão do nutricionista como tradutor da ciência da Nutrição, entendo o papel das nossas entidades como interlocutores entre a ciência e a prática, com a finalidade de favorecer a atuação dos profissionais que congrega dentro de parâmetros éticos inseridos no contexto das conquistas da ciência. Ao mesmo tempo, essas entidades devem identificar e divulgar a realidade do exercício profissional, provocando estudos e pesquisas que ofereçam um embasamento científico para as práticas do cotidiano profissional.
Essa macro visão permite que, atendendo à especificidade de cada uma das nossas entidades, seja possível, além de altamente desejável, um movimento coordenado de suporte técnico e ético para a prática profissional que, ao mesmo tempo favoreça o efetivo envolvimento de todos os inscritos/filiados na construção de uma categoria coesa, homogênea, de prestígio e de amplo reconhecimento social.
Quero ainda acrescentar que os meus longos anos de prática profissional foram fortemente enriquecidos pelas oportunidades que tive de participar tanto do Conselho, em nível regional como federal quanto da APAN. Entendo que essa vivência deveria ser experimentada pelo maior número possível de colegas, como forma de ampliar e aprofundar o conhecimento sobre a profissão e sobre as suas perspectivas imediatas e mediatas.
APAN - Em 1993 foi publicado o Código de Ética dos Nutricionistas, como colaboradora do CFN você participou ativamente deste processo. Porque foi criado e qual o objetivo principal? Qual a importância da matéria Ética Profissional na formação de futuros profissionais?
Esse tema comporta a discussão de dois ângulos da questão: o papel do órgão fiscalizador em relação ao desempenho ético de seus inscritos e aquele das escolas formadoras desses profissionais. Todas as ações exercidas pelos conselhos profissionais têm por objetivo criar condições favoráveis para o desempenho ético da profissão. Essa é uma exigência social, ou seja, os membros de uma sociedade têm o direito de receber serviços profissionais de boa qualidade, e para tanto o Estado delega aos Conselhos a atribuição de garantir a prestação competente desses serviços, tanto do ponto de vista técnico como ético. Para cumprir essa competência é ainda o Estado que lhes dá poderes para legislar e instrumentos para garantir que essa legislação seja cumprida.
Nesse contexto compreende-se a obrigatoriedade da inscrição no Conselho como condição prévia para o exercício profissional, assim como a obrigatoriedade de cumprimento das normas emanadas dos Conselhos em paralelo à prerrogativa de funcionar como Tribunal de Ética, sendo esta a única entidade profissional que dispõe de poder, delegado pelo Estado, de julgar e punir profissionais que tenham inequivocamente cometido infração. É nesse panorama que surgem os Códigos de Ética Profissional que nada mais são do que um conjunto de normas para orientar a prática profissional dentro do que se considera adequado, tanto para a sociedade como para o prestígio e reconhecimento social da profissão. Vê-se assim que o Código de Ética é um precioso instrumento para a orientar a prática do profissional e, ao mesmo tempo, uma importante ferramenta para a atuação dos Tribunais de Ética.
Mas o Código de Ética não pode estar distanciado da realidade da prática profissional e nem divorciado da dinâmica do mundo do trabalho tanto da sociedade quanto do profissional que nela se insere. Esse é o grande esforço necessário para a construção de um Código de Ética: compatibilizar o perfil idealizado para uma determinada profissão com a realidade da sua prática profissional. Daí a necessidade de ampla participação dos profissionais, das longas discussões, das profundas reflexões sobre situações de conflito que permeiam a prática, das consultas a outras categorias especialmente aquelas de campos afins. Uma vez promulgado o Código de Ética se constituirá tanto em orientação para a prática do profissional como instrumento para julgamento de desobediências às suas determinações.
Tive o privilegio de participar da construção de dois Códigos de Ética e posso afirmar que este é um processo longo e penoso mas muito gratificante quando se consegue definir um perfil profissional baseado em princípios éticos e técnicos e, ao mesmo tempo, compatível com o seu cotidiano. Do ponto de vista do ensino da Ética, percebo que essa disciplina vem merecendo maior atenção tanto por parte das escolas como do Conselho. Ainda há muito que caminhar pois os alunos, mergulhados nos desafios das muitas disciplinas que compõem a grade curricular do Curso de Nutrição, nem sempre percebem a importância de uma proposta que só terá pleno sentido quando iniciar a sua prática profissional.
A meu ver, deve ser dada especial atenção à qualificação do docente encarregado dessa disciplina, para que ele possa conduzir sua ação de forma significativa para o futuro nutricionista. Discussão de casos éticos, aprofundamento nas questões filosóficas e sociológicas que determinam o comportamento do indivíduo em sociedade, são dois exemplos de tópicos que devem estar presentes na formação do aluno. E para tal faz-se necessária uma habilitação específica para o docente da disciplina de Ética, de forma a prepará-lo para discutir e aprofundar questões sobre o desejável comportamento profissional do nutricionista.
Mas, tanto quanto os alunos da graduação, como os profissionais já em exercício devem ter a oportunidade de aproximar-se desse tema pois é na prática diária que surgem as questões éticas e é no dia a dia, de forma solitária e individual, que são tomadas as decisões sobre as respectivas condutas. Entendo que a discussão de aspectos éticos deveria estar mais presente nas propostas de eventos dirigidos aos profissionais, abrindo espaço para uma contínua reflexão sobre as condutas da prática diária do nutricionista.
APAN - Em 2006, em reconhecimento a importância do seu trabalho para a ciência da Nutrição, você ganhou o Prêmio Eliete Salomom Tudisco de Profissional do ano. Qual a importância deste tipo de premiação para a profissão?
Olhando para trás percebo que em várias ocasiões da minha vida profissional trabalhei para o engrandecimento da profissão de Nutricionista. E é nesse sentido que entendo a homenagem que me foi prestada. Esse prêmio foi de grande significado pessoal, mas premiou também todos aqueles com os quais tive a oportunidade de trabalhar ao longo da minha carreira. Nada do que fiz foi feito sozinha: tive o privilegio de atuar ao lado de incontáveis colegas com os quais pude desenvolver ações que penso terem contribuído para o engrandecimento da profissão. Essa premiação teve ainda especial significado para mim uma vez que leva o nome de Eliete Salomon Tudisco, ilustre e querida colega com quem tive o privilégio de conviver e trabalhar, em diversas ocasiões.
Desejo que essa premiação seja um incentivo para todos nossos colegas em busca de uma atuação baseada na ciência, na técnica e na ética, que são os pilares da prática profissional.
(Repost de publicação)
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